Pag. 63 – “ A ressurreição. Sob a forma grosseira por que
é formulada para consolo dos fracos, essa ideia me é estranha. O que Cristo
disse dos vivos e dos mortos sempre o entendi de modo diferente. Onde iriam pôr
toda essas multidões reunidas no decorrer dos milênios? O universo inteiro não
lhes bastaria e, por Deus, o bem e a razão deveriam ceder lugar; seriam
esmagados nesse acotovelamento ávido e bestial.
Mas
uma vida sempre idêntica e infinita é o que enche o universo e se renova de
hora em ora, em inúmeras combinações e metamorfoses. Tu, por exemplo, indagas
com inquietação se vais ressuscitar; no entanto já ressuscitaste quando
nasceste, sem mesmo o teres percebidos.
Irás
sofrer, tem a carne consciência de sua
ruína? Em outras palavras, que sucederia à tua consciência? Mas, que é a
consciência? Vejamos isto um pouco. Querer dormir conscientemente é ter insônia
na certa; esforçar-se por ter consciência do trabalho da própria digestão é
correr para um desarranjo nervoso. A
consciência é um veneno, um instrumento de auto-intoxicação, para quem a aplica
em si mesmo. A consciência é uma luz dirigida para fora, a consciência ilumina
a estrada a nossa frente, para evitar que tropecemos.
A
consciência é um farol aceso à frente de uma locomotiva; se for dirigido para
dentro dela, virá a catástrofe.
Que
acontecerá, então, à tua consciência? Olha que digo: tua consciência. Mas tu mesma, que és? Aí está toda a questão.
Vejamos isso mais de perto. Que sentes, de que parte do composto que és tens
consciência? De teus rins, de teu fígado, de tuas veias? Não. Rebusca em tuas
lembranças e só te surpreenderão voltadas para fora, para a ação, para a obra
de tuas mãos, para tua família e para os outros. E agora, escuta-me bem. O
homem presente nos outros, justamente isso é que é a alma do homem. Eis o que
tu és, eis o que respirou, aquilo de que se alimentou. Aquilo que bebeu durante
toda a vida a tua consciência. Isto é ta alma, tua imortalidade, tua vida nos
outros. E então? Nos outros foste, nos outros serás. E tudo o que te puder ser
feito a seguir, isso chama recordação. Serás tu, entrada na composição do
futuro.
Um
última coisa, por fim. Não tens por que inquietar-te. A morte não existe. A
morte não nos diz respeito. Falaste de talento: isto, sim, é outra coisa, é
nosso, nós é que o descobrimos. E o talento, no sentido mais alto e mais vasto,
é o dom da vida.
Não
haverá morte, disse São João. Vê como sua argumentação é simples. Não haverá
morte, porque o passado foi resolvido. É quase como se ele dissesse: não haverá
morte porque isso é conhecido, porque é história antiga e não nos diverte mais;
agora, precisamos do que é novo, e o que é novo é a vida eterna.”
Pag 71 – “Lara bordejava a estrada de ferro, seguindo um
caminho de terra batida por peregrinos e vagabundos e depois cortava os campos
por uma vereda que levava à floresta. Detinha-se ali e, fechando os olhos,
aspira os odores inextrincáveis do espaço em torno. Aquilo era mais próximo do
que pai e mãe, mais doce do que um bem-amado e de melhor conselho do que um
livro. Por leve instante, o sentido da existência tornava-se evidente. Estava
ali, compreendida, para ver claro na beleza arrebatadora da terra e para dar
nome a todas as coisas. E, se isso lhe ultrapassasse as forças para dar
nascimento, por amor à vida, a sucessores que em seu lugar fizessem.”
Pag 335 – “... erguia-se uma bela sorveira solitaria, cor
de ferrugem, a única de todas as árvores que conservava suas folhas. Estava
plantada sobre um montículo que dominada
torrões de terras pantanosas e elevava para o céu os corimbos d suas bagas
duras dum vermelho vivo, que se abriam sobre o céu cor de chumbo dos primeiros
dias de chuva e de neve do inverno que
começava. Passarinhos de plumagem brilhante como a aurora das manhas de geada,
melharucos, pousavam sobre a sorveira e bicavam lentamente as grossas bagas de
sua escolha, depois, levantando vivamente a cabecinha e estendendo o pescoço,
engoliam com esforço.”
Passarinho Melharuco |
Pag 414 – “Após duas ou três estrofes redigidas
facilmente, e algumas comparações que causaram espanto a si mesmo, foi tomado
inteiramente pelo seu trabalho e sentiu a aproximação do que se chama a
inspiração. A relação das forças que
regem a criação parece então revirar-se, a primazia não cabe mais ao homem e ao
estado de alma ao qual procura das uma expressão, mas à linguagem pela qual
quer exprimi-lo. A linguagem, pátria e receptáculo da beleza e do sentido,
põe-se ela mesma a pensar e a falar pelo homem, e torna-se toda música, não por
sua ressonância exterior e sensível, mas pela impetuosidade e potência de seu
movimento interior. Semelhante então à massa irrompente de um rio cuja corrente
vai polindo as pedras do fundo e aciona a roda dos moinhos, o fluxo da
linguagem, por si mesma e por suas próprias leis, cria em caminho e como de
passagem a medida, a rima, e mil outras formas, mil outras figuras ainda mais
importantes, mas até aqui desconhecidas, inexploradas e se nome.”
Observando
essas citações, é até estranho pensar que o tema do livro seja a vida de um médico
durante o período conturbadíssimo que
vai desde o domingo sangrento em 1905, passa pela 1ª guerra, Revolução Russa,
NEP e chega até os pés da 2ª Guerra Mundial.
No
livro há tanta delicadeza, gentileza, tanta inteligência e riqueza interior que
é por vezes desconcertante ter como pano de fundo a guerra, a violência e a
deterioração humana.
Livro
e autor incríveis! ..... Afinal, Boris
Pasternak ganhou o Prêmio Nobel em 1958, não era de se esperar menos!!!
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